quarta-feira, 24 de dezembro de 2014


Pelo menos para mim e grande parte da comunidade científica, uma publicação completa precisa apresentar um estudo concluído com um experimento ou estudo de caso que comprove a tese do trabalho. Já um position paper ou artigo curto, é publicado para demonstrar um estudo em inicial, por isso tem entre 1 e 3 páginas. Outra forma de apresentar um estudo em andamento, submetido exclusivamente para eventos científicos, é através de um pôster avaliado por meio de um artigo resumido.

Em termos de avaliação da pesquisa científica, desde a seleção de cursos de pós-graduação até a atribuição de bolsas de produtividade, toda a carreira de um pesquisador é baseada em suas publicações. Nesse sentido, as universidades e agências atribuem maior pontuação para publicações de artigos completos, uma vez que trata-se de uma pesquisa comprovada por meio de um experimento ou estudo de caso, o que demanda anos de pesquisa.

Surpreendentemente, estava realizando uma revisão sistemática e encontrei alguns resumos de um dos eventos internacionais mais qualificados da área de engenharia de software, o International Computer and Software Engineering (ICSE). Os artigos completos publicados nesse evento são considerados QUALIS A1, são os melhores do mundo na área de engenharia de software. O artigo é avaliado por um comitê altamente qualificado e exige muito rigor dos revisores para comprovação dos resultados obtidos no trabalho, investigação do estado da arte da pesquisa e comparações com outros trabalhos. Por isso uma pesquisa completa demora anos, muito diferente de um artigo curto que podemos escrever em poucas semanas.

Voltando a surpresa, queria saber se os autores continuaram as pesquisas apresentadas em seus resumos, então procurei os lattes deles e notei que os resumos foram declarados ao CNPQ como artigos completos. Se a publicação está completamente relacionada com o desempenho do pesquisador, desde o seu início de carreira quando participa de seleções em programas de pós-graduação, depois quando docente para a obtenção de recursos em projetos e concorrer em bolsas de produtividade, não seria uma trapaça com os outros estudantes e pesquisadores? Além disso, a CAPES realiza uma avaliação trienal, atribuindo maior nota nos artigos completos e publicados com QUALIS A1.

Portanto, essa constatação é muito grave para Sociedade Brasileira de Computação. Estudantes, pesquisadores e programas podem ter sido prejudicados com a perda de recursos. Ao analisar alguns artigos, percebi a existência de 80 resumos declarados como artigos completos. É muita coisa!

Segundo Conselho de Ética e Pesquisa (CONEP), é também um caso de desvio de conduta sério. Diversas bolsas de pesquisa e investimentos em infraestrutura poderiam ser alocados para outros programas de pós-graduação, universidades e estudantes. Infelizmente, pesquisadores que disputaram bolsa de produtividade em pesquisa podem ter perdido várias oportunidades para esses pesquisadores. Eu perdi uma bolsa de pesquisa!

Enquanto a sociedade clama por ética e combate à corrupção, em menos de 10 minutos, detectei diversas fraudes em currículos de pesquisadores. Uma fraude desse tipo tem o objetivo claro de obter vantagens seja para o estudante, pesquisador, coautores, grupo de pesquisa, programa de pós-graduação e universidade. É muito triste saber que pesquisadores renomados ao invés de melhorarem de fato a qualidade da pós-graduação do país, criaram um artifício para demonstrar uma qualidade artificial.

Toda a comunidade de computação deveria repudiar essa prática e o ministério público entrar com um processo para reparação dos prejuízos causados à sociedade. Conheço diversos pesquisadores do nordeste, além do interior de São Paulo e Minas, que lutam para obter recursos. Há universidades que não possuem nem mesmo uma estrutura adequada de pesquisa.

Apenas esses 80 artigos, distribuídos entre um grupo de 20 e poucos, conseguem dar uma enorme vantagem ao pesquisadores numa avaliação entre pares competindo para obtenção de bolsas e projetos, porque nenhuma agência verifica artigos. Todos os 80 tem sempre o mesmo co-autor. Por isso, poderia até achar que é um esquema bem montado, se não houvesse internet. Pesquisei os eventos e estão descritos claramente que foram aceitos como pôster e resumos. Existem artigos também que simulam pesquisas, adicionando referências às idéias alheias.

Uma coisa é preciso reconhecer, são excelentes escritores de ficção e sabem administrar sua produção como poucos. Todos da base da pirâmide colocam os nomes dos orientadores e dos ex-orientadores deles, mesmo que não tenham qualquer projeto juntos. Elevam um por um do grupo através dos anos, até que este ganhe notoriedade e possa criar muitas parcerias de pesquisa. Então ele abastece a pirâmide com novos orientandos até de outros programas, citando o pesquisador parceiro e o mais antigo. Gerando novas pirâmides, sempre citando quem está no topo, assim todos eles mantém suas bolsas de produtividade. 

É muito difícil e dispendioso realizar uma pesquisa para publicar em eventos A1. Enquanto um pesquisador ético trabalha junto com um aluno de doutorado por 4 anos e a CAPES paga uma bolsa de R$2.200, ou seja, o mínimo de R$105.600, esse grupo converte seus resumos em uma pesquisa completa sem apresentar qualquer resultado ou avanço para a sociedade. Imagine quanto se gasta para pagar os custos dessas viagens em detrimento de outros pesquisadores que não conseguem publicar suas pesquisas completas por conta da ausência de recursos nas suas universidades?

Essa triste constatação é uma vergonha para a pesquisa científica no Brasil, especialmente por saber que se trata de um dos maiores grupos na área de engenharia de software. Estou completamente decepcionado por algum dia ter mencionado esses pesquisadores e seus estudos em minhas referências.  

Pior é saber que esses são apenas exemplos dessa fraude praticada por muitos outros pesquisadores. A Sociedade Brasileira de Computação e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência precisa fazer alguma coisa. Quem sabe automatizar os passos para comprovar que artigos declarados completos realmente possuem uma pesquisa completa para evitar outras fraudes como essas?

Repúdio.

Nature diz que produção científica brasileira é lixo acadêmico

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